E virou a página.
Estava acabado, tudo acabado. Felizmente. Aquele capítulo terminara e estava na hora de a ponta da caneta começar a desenhar novas ideias, novos sonhos e novos projectos.
Sabia que estava mudada. Sentia-o, e podia afirmar com toda a certeza que o Mundo a tinha feito crescer. Não, não era aquele “crescer depressa demais” de que todos falavam. Um crescer a sério, um crescer do coração. Um crescer daqueles que transformam por dentro e trazem uma forma nova de ver as coisas, mais madura. Um crescer que muda um olhar.
A rua muda qualquer um. Só quem vive abandonado a cada banco de jardim, a cada berma, a cada grito da noite e à ruína de cada manhã é que percebe como muda. Muda, explode tudo por dentro de cada vez que um olhar desconhecido deixa passar o medo que sente. O medo da desgraça, e principalmente o medo que aquela desgraça o atinja a ele também.
Sim. Eram já incontáveis as voltas que aquele coração tinha dado ao perceber que as pessoas tinham medo dela. Quando a olhavam, o relógio começava a andar mais depressa. Aceleravam o passo, certos de que havia algo bem urgente para fazer num qualquer lugar bem longe dali.
As pessoas não gostavam da miséria, porque a miséria incomoda. É que apesar de tudo lembra-as que são humanas, e que por isso não são diferentes dos outros.
Mas não, aquela vida não lhes podia tocar também a elas. Não podia! E por isso fugiam. Porque a miséria incomoda, mas não o suficiente para quererem acabar com ela.
Mas o que mais a incomodava não era a cobardia daqueles olhares cheios de medo da sua própria desgraça. O que mais a incomodava era a pena que tinham dela.
Revoltavam-na os olhares compassivos dos “perfeitos”, que até lamentavam muito a sua vida triste e tumultuosa. Revoltavam-na as “esmolinhas para a pobrezinha que não tem nada para comer”.
Não, ela não era dessas. Ela não queria esmolinhas de ninguém. Ela queria dignidade. E várias foram as pessoas que ficaram muito admiradas quando ela recusou a caridosa moeda de vinte cêntimos que lhe ofereciam.
Iam embora furiosas, a pensar em toda a ingratidão que lhe tinham sentido.
E talvez tivessem razão. Talvez devesse aproveitar tudo para conseguir sobreviver. Mas preferia vasculhar no lixo a aceitar caridadezitas baratas. Sim, vasculhar no lixo. Não era nada que já não tivesse usado como último recurso, para que a miséria não a matasse.
“Vasculhar no lixo, que porcaria!”, murmuravam as pessoas que por ela passavam. A frase que também ela já havia murmurado antes, quando por acaso se deparava com a situação. Mas naquela altura… naquela altura não sabia o que era a vida.
Agora sim. Agora sabia. Agora sentia no corpo cada bofetada que o Mundo lhe dava. E sabia que tinha forças para se libertar de cada nódoa negra que tinha no corpo, principalmente aquelas que mais ninguém via, mas que ela sentia bem. Sim, as do coração.
2 comentários:
É lá que isto promete...
Do prólogo ao epílogo cá estarei!
Um beijinho grande!
Xiiiilala!!
... isto promete...
:D
Cá estarei para te ler!
:D
Beijoca ;)
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