terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Capítulo 6 [5]

Estou tão feliz, sabes? Foi preciso enterrar-me até às pontas dos cabelos, é verdade, mas finalmente aprendi o gozo de viver.
E acho que Deus é isto.
Se calhar é um pouco estranho falar-te assim, porque eu nunca fui muito dada à religião, mas acho que ultimamente tenho dado de caras com Ele muito frequentemente…
Agora faz sentido aquela frase que ouvi um dia uma amiga dizer: “Deus está entre mim e o melhor de mim mesma”.
Na altura não percebi, se calhar porque, por ter a palavra “Deus” lá no meio, pensei logo que era mais uma caridadezinha barata com ares de profundidade azeda.
Mas não. Agora percebo, Mariana, e faz todo o sentido. Sim, esta força que sinto nas pontas dos pés, este empurrar silencioso, é isso Deus! A força que me faz caminhar, que me faz mexer, que me põe um sorriso em cada manhã… é Deus! Isto que me faz, com uma liberdade incrível, querer chegar ao melhor de mim mesma, caraças, é claro que é Deus!
Deus é Amor, pois é. E saboreio isso a cada dia, minha filha. Contigo cá dentro, há sempre lugar para Ele, porque tu e Ele estão sempre de mãos dadas.
Às vezes imagino-te no Seu colo, e vejo o teu sorriso, o mesmo sorriso que me davas quando estavas no colo do papá. Depois os vossos rostos fundem-se num só, e percebo como são tão profundamente divinos, assim unidos… são tão profundamente amorosos que chegam a ser divinos!
Foi um anjo, Mariana, foi um anjo que me segredou todas estas maravilhas. E se hoje te falo de Deus com toda a verdade que o meu coração é capaz, a ele o devo.
Por falar nisso, o nosso anjo está neste momento a tocar uma peça lindíssima de um compositor que não consigo identificar. Acho que daqui a pouco vou lá matar a curiosidade, só mesmo como pretexto para um abraço apertado.
Por agora tenho que acabar, querida. A folha está já encharcada por estas lágrimas que começaram a cair não sei bem em que ponto desta carta. As letras já se fundem com a folha branca, numa mancha de azul meio indefinida.
(...)
Só falta um! Esse vai no dia de Ano Novo! Imaginam porquê?

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Capítulo 6 [4]

A partir desse dia, tudo mudou. Esta loja triste começou a contar com o sorriso do Diogo, que a cada dia é uma criança mais feliz.
A Luísa finalmente descobriu o filho que tem, e o olhar perdido deu lugar a um olhar bem consciente de si próprio.
A partir das quatro e meia, a música saída do Steinway&Sons do pequeno Diogo é uma constante. Peças simples mas muito bem tocadas. Que tem futuro, isso tem! Diz o professor, a mãe, eu própria e as centenas de clientes que vão frequentando a loja. A verdade é que temos cada vez mais “fregueses”, que são atraídos pelo ambiente colorido que paira agora no ar.
Os amigos do Diogo têm acesso livre à loja, à casa, ao quarto. Na loja há, alias, uma sala reservada à criançada, que está cada vez mais entusiasmada com os mecanismos dos instrumentos, dos sons e da própria música. Parece que, na turma dele, são já poucos os que ainda não convenceram os pais a aprender um instrumento!
Estão vivos, Mariana. Estão finalmente vivos. E sabes o que é mais engraçado? É que nos ressuscitámos uns aos outros. Sim, re-suscitámo-nos! Devolvemo-nos ao Mundo, nós que andávamos bem metidos nos nossos mundinhos.
Por tua causa, por causa do Diogo, por nossa causa. Por causa da felicidade de sermos crianças.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Capítulo 6 [3]

Ficámos horas a conversar. Pela primeira vez, aquela mulher passou mais do que cinco minutos a conversar com alguém.
Acho que, naquela conversa, experimentou todas as sensações que podem existir. Contei-lhe tudo, Mariana, tudo. A vida que levava antes (acho que lhe fez lembrar alguma coisa!), a tua morte e a do papá, como fiquei depois de vos perder, a sensação de vazio que me percorreu, como fui posta fora de casa sem que isso me incomodasse minimamente, os primeiros dias na rua, os mais desesperados, as humilhações, a relação de proximidade com a morte, o aparecimento do Diogo, a esperança, o devolver da vida, o dia em que me trouxe para casa e me deu o aspecto de mulher normal, as parecenças que encontrei entre ela e a antiga Laura, tudo!
Ela não falou o tempo todo. Ouviu com toda a atenção do mundo e, depois, quando eu já estava preparada para a demissão (que, no fundo, já tinha tomado como certa), ela levantou-se da cadeira onde estava, precipitou-se sobre mim e, como quem já perdeu o jeito para afectos, deu-me um beijo na face.
Estava lavada em lágrimas.
Levantei-me, abracei-a com força e, quando os nossos olhos se encontraram, vi-lhe o agradecimento no olhar.
Já me tinha habituado a ver muita coisa nos olhares das pessoas. No daquela mulher via uma mistura de sensações indescritível. Sabia que a minha história lhe tinha tocado, mas não como uma história forte de uma mulher com uma vida atribulada. A minha história, tinha-a sentido como a sua própria história. Melhor, como um aviso vivo de que a vida não espera que tenhamos agenda livre para sermos felizes.
Como ela se virasse de novo para a porta, chamei:
- D. Luísa, pode fazer-me um favor?
- Tudo o que quiser.
- Faça-me o favor de ser feliz.
Sorriu. E antes de sair, voltou-se:
- Laura, esqueça a “Dona”, Luísa está muito bem.
E foi ser feliz.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Capítulo 6 [2]

Hoje fazes 8 anos. Não gosto de dizer “fazias 8 anos”, porque tu ainda cá estás. E hoje faço-te uma festa, minha filha, hoje o coração está revestido de balões, serpentinas e bolos coloridos, para te receber. Estás de parabéns, e não só por te teres conseguido manter cá dentro, por não teres tido vontade de fugir quando percebeste o estado a que cheguei. Estás de parabéns por me teres mudado.
Sim, eu percebi a partida, Mariana! Eu percebi o que querias com o Diogo… percebi o truque de te despejares em cima dele!
Despejar talvez seja uma palavra feia – não encontro outra. Despejaste-te, literalmente. Aquele olhar é teu, aquele sorriso é teu, e sei que foi por ti que mudei.
Quem ler isto ainda me interpreta mal. Mas não vai ler, tu vais ler, e sei como me percebes. O Diogo foi tão importante, é tão importante. Mas é tão infinitamente criança que não se importa minimamente se lhe disser que foi por ti que mudei. Ele sabe, no fundo. Sabe como és importante, sabe que és tu que me moves. És tu a única pessoa capaz de me fazer levantar da cama a cada manhã.
Todos os dias, antes de me levantar, penso no teu sorriso e no orgulho que terias de mim. Pareço uma criança a querer agradar os papás… neste caso, sou uma criança a querer agradar outra criança, e isso faz-me muito feliz.
Desta secretária onde estou dá para ver muito bem o Diogo. A porta é transparente, por isso dá para ver um pouquinho da loja… agora tem um piano reservado para o pequenino. E como ele toca bem, Mariana… tem um sentido musical fora do normal, para a idade. Adoro ouvi-lo tocar. Mas ainda gosto mais de ver a mãe babada a olhá-lo. Ela também mudou muito, sabes? O pai ainda continua lá nos seus negócios, mas eu ia jurar que ela cresceu.
Como está diferente do dia em que a conheci. Quando, naquele dia, desci as escadas que davam para a sala, com as roupas que eram dela, encontrei uma mulher triste. Uma mulher que eu conhecia muito bem, de olhar cansado e demasiado preocupada com as coisas urgentes. Eu, que agora dava mais importância às importantes, sabia vê-lo bem.
Quando me viu, saiu-lhe um instantâneo “Quem é esta?!”, acompanhado de um desprezo que me incomodou.
O Diogo foi impecável, apenas disse:
- É uma amiga minha, mamã! É contabilista, e achei que te podia ajudar!
- Contabilista? Boa, era mesmo disso que estava a precisar.
Fez um sorriso de alívio. Achei estranho que não fizesse mais perguntas, mas era tão “grande” que devia achar normal que o filho de seis anos tivesse amigos contabilistas, advogados, juízes e jornalistas.
Dirigiu-me a uma sala, acho que era o escritório. Aí, fez-me meia dúzia de perguntas que tinham a ver com a minha experiência como contabilista e mais nada. Acho que se lhe dissesse que não percebia nada de números e que aquilo era só mais um passatempo ela nem sequer ia ouvir. O cargo estava finalmente ocupado, era o que interessava.
Decidi não lhe contar nada, porque não era o momento certo. Nessa noite, fiquei no quarto de hóspedes. Nessa e em todas as outras, na verdade. Foi a única coisa que pedi, além do modesto ordenado que me estava reservado: um sítio para dormir, “enquanto não me arranjava”.
Ela assentiu, e não fez mais perguntas. Acho que foi isso que mais me incomodou nela, sabes? A indiferença, a falta de curiosidade.
Não, a curiosidade não era nada que a atingisse. A verdade é que andava demasiado ocupada no seu mundinho, nas coisas a cumprir, no passo a dar a seguir. Ter curiosidade era dar demasiada atenção aos outros, e ela não tinha tempo para isso.
Não a podia condenar, não achas? Ela era, na verdade, espelho de mim própria! Mas havia de conseguir chamá-la à atenção, havia de conseguir aquilo que ninguém conseguiu comigo... eu aprendi à minha custa, e não o aconselho a ninguém!
Comecei a trabalhar no dia seguinte. Senti-me destreinada, fora daquele mundo de contas e trapalhadas, mas com o tempo fui-me habituando e a rapidez e a perspicácia voltaram.
Uma semana depois de estar instalada, sentia já que o meu trabalho agradava a D. Luísa.
Ainda não te tinha dito o nome dela, pois não? Talvez não, porque talvez até aqui ela não precisasse realmente de nome: era muito pouco pessoa!
Agora precisa.
Naquela sexta-feira à noite, depois de um dia de trabalho, a D. Luísa preparava-se para sair da loja. Não que fosse deixar de trabalhar, que o mais provável era, a seguir, fechar-se no escritório de casa a acabar o trabalho do dia.
Por uma razão qualquer que não te consigo agora explicar, chamei-a, já ela tinha a mão na maçaneta da porta.
- Preciso de falar consigo.
Fez cara impaciente.
- Diga, Laura, e rápido, que estou com pressa.
Respirei fundo:
- Eu sou uma sem-abrigo.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Capítulo 6 [1]

Começa hoje o último capítulo da história. É grande, e só o cortei porque tinha mesmo de ser. Mas nada melhor do que esta semana para esta carta. No fundo, é um novo nascimento da nossa Laura - é o seu Natal. E a Mariana vai estar lá para festejar com ela.



Mariana:

Sinto a tua falta.

Não sabia como começar esta carta, mas acho que foi o mais verdadeiro que encontrei para te dizer, e a verdade é uma forma bonita de se começar uma carta de amor.

Carta de Amor. É o que isto pretende ser, na verdade. Uma Carta de Amor, de Perdão e de Saudade.

Talvez seja uma novidade para ti, porque as únicas saudades que um dia te mostrei foram, a cada manhã, as do escritório e dos números.

Mas eu agora estou diferente. Tão diferente que ainda me vêm as lágrimas aos olhos de cada vez que lembro as asneiras que fiz contigo. Foi pobre, muito pobre da minha parte pensar que te estava a fazer bem com a vida que levava. Tão pobre, tão pobre, que a nossa relação nunca foi bem uma relação. E nem sabes como dói.

Dói, dói muito, agora que percebo quão errada estava. Perdoas-me? Sei que não adianta nada, mas dá-me esperança receber o teu perdão. Dá-me vontade de começar de novo, não sei!

Olha, tenho tanta coisa para te contar… não sei se me ouves, ou se é verdade aquilo que as pessoas dizem, de “olhares sempre por mim, aí, no céu”. O mistério da morte ainda é isso mesmo para mim, um mistério.

Escrevo-te não com a certeza de que me vás ouvir, mas com a esperança de que a tua memória esteja ainda intacta, algures no meu coração. Se calhar escrevo para mim própria, mas prefiro pensar que ainda posso partilhar contigo aquilo que sou! Sim, aquilo que sou, porque agora sou muito diferente daquilo que era quando estavas aqui.

Cresci, sabes? E é verdade, a rua fez-me “crescer depressa demais”, mas não é desse crescimento que estou a falar. Aliás, a isso não gosto de chamar crescimento, porque crescer é outra coisa. O “crescer depressa de mais” é ganhar anti-corpos que derrotem a vida, é ficar de olhar duro, olhar tudo e todos não com olhos de quem descobre mas com olhos de quem já sabe demasiado.

Crescer não. Crescer é voltar a ser criança. Não ficar infantil, mas mais simples ao nível do coração. É ver tudo com olhos de quem vive, de quem encontra em cada um novas formas de amar. Crescer é virar a página a cada dia, é encarar o futuro, é viver com o sorriso como princípio.

Agora sim. Eu cresci. Cresci a sério, porque tornei-me criança. E como gostava que me visses agora.

Agora já não vivo a contabilidade, sou contabilista para viver. E se queres saber (mas olha que é um segredo!), escrevo-te aqui do escritório, com uma dúzia de capas para ver aqui ao meu lado.

Não me importa. És muito mais importante! Partilhar contigo é infinitamente mais importante que números e cálculos. Finalmente. Dois anos depois, partilhar contigo tornou-se mais importante. Bem, mais vale tarde que nunca!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Capítulo 5 [4]

Laura ouvia-o com a atenção que uma mãe dá a um filho. Estava com as lágrimas nos olhos. Mas estas não eram as mesmas lágrimas que tinha chorado na noite anterior ao seu primeiro encontro com o Diogo. Estas eram as melhores lágrimas que já tinha chorado.

Naquele rapaz tão pequenino e ao mesmo tempo tão sábio, via esperança. Depois de lhe ter devolvido a alegria de viver, aqui estava ele a tentar dar-lhe o sustento de que precisava para voltar a ser uma mulher normal, sem estar dependente de ninguém.

- Mas… neste estado? Como é que a tua mamã vai aceitar uma contabilista sem-abrigo?

O Diogo abriu aquele sorriso que gostava tanto de ver:

- Isso… não te preocupes.

Abriu a porta que dava para a casa-de-banho do quarto.

- Podes tomar banho aqui, se quiseres. Só tenho champô para crianças, mas para já deve servir… eu vou buscar umas roupas e venho já.

Saiu do quarto de rompante e deixou Laura sozinha, com a porta da casa de banho enorme aberta para ela.

Entrou devagar, como se de um palácio se tratasse. Era uma casa de banho com cores vivas, de criança, mas servia perfeitamente. Oh, servir. Na verdade, nunca tinha entrado numa casa de banho tão bonita e espaçosa.

Fechou a porta atrás de si e começou a tirar as roupas velhas que a cobriam. Já não se lembrava da última vez que tomara um banho completo, com direito a água quente e champô.

Habitualmente, lavava-se onde podia, no laguinho do jardim, nas velhas casas de banho municipais, nas pensões onde ficava de vez em quando.

Mas assim, já não se lembrava.

Olhou-se ao espelho. Tinha um aspecto miserável. Roupas rotas, cara suja, cabelo desgrenhado. Até os dentes, que sempre conservara tão limpos e brancos, tinham agora sujidade de semanas sem os lavar.

Entrou na banheira. Abriu a água quente e deixou-a ferver-lhe as costas cansadas. Olhou para o chão. A água que lhe escorria do corpo continha a sujidade da rua que já lhe estava entranhada. Fechou os olhos, e sentiu o conforto que já não conhecia.

Teve que passar o champô e o gel de banho cerca de três vezes, para se libertar de toda a sujidade que a cobria. Quando saiu da banheira, estava outra.

Em cima do balcão, duas toalhas lavadas, uma escova para o cabelo e uma escova dos dentes. O dentífrico estava dentro do copo ao lado da torneira.

Envolveu-se com a toalha grande, cobriu o cabelo com a mais pequena.

Esfregou os dentes entusiasmada. Sentia-se fresca, leve. A tarefa deve ter demorado uns dez minutos, porque no fim a escova parecia velha e os dentes brilhavam.

O Diogo esperava-a no quarto. Em cima da cama, uma camisa branca, umas calças de ganga confortáveis e uns sapatos bonitos. Tudo novo.

- Isto é tudo para mim?

- Claro.

- Mas… onde é que tu foste arranjar roupa nova assim tão rapidamente?

- A minha mamã diz que não tem tempo para ir às compras e compra tudo por telefone, vê numa revista e depois encomenda… e há muitas coisas que ela ainda não usou, ainda nem lhes tirou a etiqueta! Acho que às vezes até se esquece que as tem.

- E ela não vai dar pela falta disto tudo?

Uma gargalhada.

- Não te preocupes.


Uns momentos depois, estava pronta. Olhou-se ao espelho. Era outra pessoa. Com roupas elegantes e confortáveis, mesmo à sua medida (a mãe do Diogo devia alimentar-se também a migalhas de pão), sentia-se nova.

Sabia que não era só a roupa que lhe dava o ar jovem que agora descobria no espelho. Não, isso era outra coisa. Mas, de uma forma ou de outra, sentia-se em si mesma, e essa era uma sensação muito boa.

O Diogo bateu à porta, entrou novamente e, lá em baixo, ouviu-se o rodar da chave. A mamã. Chegava a hora.

Era, ou assim esperava, o começo de uma nova vida.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Capítulo 5 [3]

Eram perguntas que lhe estavam presas na garganta. Desta vez, não tinha conseguido travá-las.


- Lembras-te quando te perguntei o que fazias antes de viver no nosso jardim?

- Sim, lembro…

- Lembras-te de me contares como gostavas da Mariana e do Afonso, e como te afastaste deles por seres “contabilista”? Eu na altura não percebi o que queria isso dizer e ainda não percebo. Nem percebo como é que uma palavra tão feia, “contabilidade” tem o poder de afastar as pessoas de quem gostamos. Mas eu percebi que tu agora já não gostavas de contabilidade e que na verdade nunca tinhas gostado. Só que na altura só pensavas em dinheiro, como os meus papás.

Laura engoliu em seco. O Diogo continuou:

- Mas eu sei que tu agora estás mudada, e que não gostas de dinheiro, mas precisas dele para viver melhor… por isso ontem, quando ouvi a minha mamã dizer que o “filho da mãe do contabilista” se tinha despedido, eu fiquei a ouvir com atenção…

Sabes, é que os meus papás têm uma loja muito grande com muitos instrumentos muito caros… e as pessoas pagam muito dinheiro para comprar os pianos, violinos, flautas e saxofones que eles vendem! Eles estão sempre lá enfiados, o meu papá sai muitas vezes para fazer uns “negócios”… às vezes apanha um avião e tudo para fazer esses “negócios”! Não sei o que isso quer dizer, mas não gosto nada.

Eu gostava muito de poder ir mais vezes para a beira da minha mamã e dos pianos… gosto muito de tocar piano! Mas ela não quer que eu mexa, diz que eu estrago e que depois as pessoas não querem comprar… por isso manda-me para casa depois da escola, e chega muito tarde!

Ela queria que eu ficasse neste quarto todas as tardes enquanto a Amélia me trazia o lanche. Mas eu não gosto nada disso... por isso digo à Amélia que vou brincar com os meus amigos para o jardim, e ela acredita-se… acho que é porque não gosta de mim. Ela diz que não se quer chatear com “putos”, e para eu ir à minha vida… Fica a limpar a casa, a fazer o jantar… tem muito trabalho aqui, porque a casa é muito grande!

Então eu chego, vou à dispensa, tiro o que houver e saio… a essa hora normalmente a Amélia está lá em cima a limpar e não me vê! Eu sei que ela já reparou que a comida desaparece rapidamente, mas não diz nada à minha mamã porque tem medo que ela a culpe…

E hoje a minha mamã e o meu papá estavam em casa quando eu cheguei… achei muito estranho, e fiquei a ouvir a conversa deles… disseram que o contabilista se tinha despedido porque tinha tido uma proposta melhor e nem avisou antes! Então estiveram aqui em casa a ligar para os amigos todos a perguntar se conheciam algum… nada.

Então, quando se foram embora outra vez eu lembrei-me de lhes falar de ti!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Capítulo 5 [2]

Nunca mais esqueceria a sensação que lhe percorria o corpo enquanto seguia o rapaz, segurando a sua mãozinha de criança, enquanto ele a levava pela rua que ladeava o jardim. Não andaram muito. A casa dele era ali a trezentos metros do jardim a que chamava “casa”.

Entraram. Laura ficava mais admirada a cada passo que dava.

Aquilo era um casarão. Bonito, bem decorado. A verdade era que, sempre que imaginava a casa do Diogo, vinham-lhe à cabeça imagens de um apartamento modesto num prédio citadino. Às vezes imaginava até uma moradia pequena, de dois andares e não muito vistosa.

Mas nunca aquilo. Nunca vira o Diogo como um miúdo riquinho, porque ele era demasiado simples.

Mais engraçado ainda. Já passara por ali inúmeras vezes, e ficava sempre maravilhada a olhar. Pensava que adoraria entrar uma vez que fosse numa casa assim, para ver a sensação. Imaginava-se muitas vezes a entrar e a levitar, porque uma casa assim devia ter um chão demasiado caro para se calcar.

Mas o Diogo parecia não ligar muito aos jarrões, aos tapetes caros ou ao piano Steinway&Sons que reluzia na sala de estar.

Laura sempre gostara de tocar piano, apesar de já não se sentar num há anos. Tocou durante cinco anos, quando era miúda, e desde então muito raramente se sentava a tocar.

Na verdade, já não se lembrava bem de nenhuma das peças que o professor da escola de música lhe ensinara. Muito menos agora. Já tinha perdido a esperança de algum dia voltar a tocar.

Um Steinway&Sons. Um dos melhores pianos do Mundo ali, à sua beira. E o rapaz continuava a puxá-la pelos labirintos daquela casa enorme. Perdia-se ali dentro, pensou. Mas o Diogo parecia conhecê-los a todos muito bem.

O seu passo continuava certeiro. Atravessava corredores, subia escadas, depois mais umas quantas. Parou. Aquela devia ser a porta do seu quarto. Abriu, e fê-la entrar.

Era verdade. Aquele só podia ser o seu quarto. Era enorme, tinha uma cama larga e dum azul muito vivo. Ao lado, móveis enormes com brinquedos, televisão, aparelhagem, livros e mais livros de criança.

Uma mesa com um computador topo de gama, um puf de couro bem grande e colorido. À esquerda, uma enorme pista de carros novinha em folha.

Aquilo era um paraíso para qualquer criança! Tinha tudo! Se quisesse, podia passar a vida toda ali porque arranjaria sempre algo novo a que brincar.

Mas algo lhe dizia que aquela não era uma “criança qualquer”. Tudo, tudo o que ali estava cheirava a novo. Parecia nunca ter sido tocado. E talvez nunca tivesse sido.

- Diz-me, Diogo, como é que tu preferes ir ter comigo a brincar neste paraíso?

Ele riu-se.

- Isto não é um paraíso. Não gosto nada. Contigo posso brincar… gosto mais de brincar com amigos do que com coisas.

- Sim, mas… olha, porque não trazes para aqui os teus amigos da escola? Eles iam gostar tanto…

- A minha mãe não gosta que traga aqui gente. Diz que “os putos” ainda lhe estragam alguma coisa.

Olhou-o. Estava com aquele sorriso triste que lhe tinha visto da única vez que tinha falado dos pais.

- Diogo, porque é que me trouxeste cá? Porque é que nunca me falaste dos teus pais? Porque é que evitas tanto a conversa? Eles sabem que eu existo? Eles deixam-te ir brincar sozinho para o jardim todos os dias? Eles não vão ficar zangados por me trazeres a mim, que sou tão pobre, para esta casa tão bonita?

Eram perguntas que lhe estavam presas na garganta. Desta vez, não tinha conseguido travá-las.



A partir daqui, os "cortes" que vou fazer no texto vão ser um bocado... hm... rafeiros.
Só há mais dois capítulos: o resto do 5 e o 6. Acontece que são capítulos muito grandes, e se não os cortar vocês vão ficar com os olhos em bico só de olhar...

Perdoem-me se cortar a acção toda ;) Mas assim até é giro e vocês ficam curiosooos! Ou não. Mas é giro pensar que sim :)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Capítulo 5 [1]

Eram quatro e meia da tarde. Sabia que o rapaz devia estar a aparecer, chegava sempre por volta dessa hora, vindo da escola. Saía às quatro, ia a casa, pegava nuns quantos mimos e corria para o jardim.

Como sempre, Laura esperava-o com um sorriso nos lábios. Passava as manhãs a recordar todos os momentos, todas as brincadeiras, e à medida que as horas passavam o seu coração ficava mais entusiasmado. O ouvido ficava mais apurado, porque o sino da torre tocava sempre à hora certa. Às quatro badaladas já estava impaciente. Sabia-o feliz, de mochila às costas, a sair da escola. Não faltava muito.

Nesse dia, o Diogo apareceu mais tarde. Mas às cinco da tarde, quando já estava a ficar preocupada, viu-o ao fundo da rua, a correr em direcção ao jardim:

- Desculpa, desculpa, desculpa! Não pude vir mais cedo!

- Não faz mal, meu querido. Pensava que já não vinhas…

- Oh, achas que não vinha? Claro que vinha, venho sempre.

- Sim, mas então o que se passou?

- Preciso de falar contigo.

- Precisas? Então vá, desembucha!

Sentaram-se no murinho que rodeava o pequeno chafariz. O Diogo começou:

- Gostas desta vida?

Embatucou. A verdade é que não estava à espera, não vindo dele. Não sabia o que responder.

- Desta… vida? Mas… como assim? Sabes que agora gosto da minha vida porque és meu amigo…

- Sim, eu sei! Mas gostas de viver assim, sem casa, com tanto frio de noite?

Aquilo era uma novidade para ela. Desde que aquele rapaz aparecera na sua vida que nunca mais questionara estas coisas. Desde que estava na rua, sempre sonhara voltar a ter uma casa, um trabalho, uma vida organizada para começar do zero. Mas o aparecimento do Diogo tinha-lhe trazido tanta vida que sentia que não precisava de mais nada… até agora.

- Eu… já me habituei… e agora sou mais feliz…

- Mas não gostavas de ser feliz e ter uma casa?

- Oh, claro que gostava…

A criança olhou-a e esboçou um sorriso luminoso.

- Vem comigo.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Capítulo 4

O Diogo começou a aparecer todos os dias. Trazia-lhe sempre algo para comer, porque era suficientemente inteligente para perceber que Laura não tinha com que se sustentar. Aparecia no jardim com a mochila cheia de pacotes de bolachas, embalagens de leite achocolatado, batatas fritas, chocolates. Às vezes, umas fatias de queijo metidas em dois ou três pães acabados de trazer da confeitaria. Outras, um tupperware com os restos da sopa do jantar do dia anterior.

Estes gestos Laura era incapaz de recusar. Isto não eram “esmolinhas”, eram pedaços de amor.

Mas preocupava-se. O Diogo nunca lhe falara dos pais, nunca lhe dissera se sabiam da sua existência, se deixavam, se incentivavam, se não se importavam. A criança simplesmente não dizia. Mas a cada dia trazia mais coisas, mais presentes para a nova amiga.

Era verdade. Agora eram muito amigos. O Diogo tinha-lhe devolvido as réstias de alegria que ainda guardava dentro de si. Já brincava, já sorria, já falava. Agora conseguia ser pessoa.

Aquelas tardes eram as mais felizes que alguma vez tivera. Sim, mesmo quando era uma mulher “normal”. As tardes no escritório não se comparavam às que o Diogo lhe sabia dar.

Brincou mais naquelas semanas que passou na companhia do rapaz do que em toda a sua vida. De cavalinho passava a senhora doutora, de senhora doutora a atleta, de atleta a camaleão. Todas as brincadeiras serviam para eles. As tradicionais, as inventadas na hora.

No fim, lanchavam juntos aquilo que o Diogo trazia na mochila laranja. Nesses momentos, Laura olhava-o e percebia. Agora era uma mulher feliz, e a ele o devia. Não tinha uma casa, um trabalho, mas era feliz. Não tinha o básico, mas tinha o importante. E isso bastava-lhe.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Capítulo 3 [2]

O miúdo estava sentado com o seu casacão no colo e sorria para ela. Não lhe devolveu o sorriso, porque já não sabia sorrir. Aproximou-se, olhou-o fixamente, e sentou-se na outra ponta do banco. Esperava que se assustasse e fugisse para as saias da mãe, mas ele continuou sentado, a sorrir-lhe…

Devia ter o espanto estampado na cara. Não estava habituada a que se aproximassem dela, e muito menos a que lhe sorrissem…

Depois de umas trocas de olhares, o miúdo falou:

- Olá.

Não lhe respondeu. Já não sabia falar.

- Como te chamas? Eu sou o Diogo.

Não conseguia descolar os lábios. Parecia que tinham sido cozidos a agulha. Permaneceu, assim, a olhá-lo embasbacada durante o que lhe pareceram horas.

- És esquisita, sabes? As pessoas adultas que eu conheço falam muito, mas tu não. Não gosto de quem fala muito. Gosto de ti.

- Ninguém gosta de mim.

- Afinal falas! Cheguei a pensar que eras muda. Assim ainda gosto mais de ti, porque sabes falar mas só falas quando é importante.

- Porque é que estás aqui?

- Vim brincar para o jardim e achei-te bonita. Gosto de falar com pessoas bonitas.

- Não tens medo?

- Medo? De quê?

- De mim.

- Porque é que havia de ter?

- Porque sou pobre.

O Diogo riu-se. Tinha um sorriso muito bonito, só agora reparava. Não devia ter mais do que seis anos.

- Vamos brincar?

- Eu não sei brincar.

- Não tens filhos?

- Já tive, mas já não vejo a minha filha há muitos anos.

- E não brincavas com ela?

- Não.

-Oh, porquê? Não gostavas dela?

- Gostava.

- Então porque é que não brincavas com ela?

Não respondeu. Olhou para os olhos do rapaz, não havia ponta de maldade naquelas perguntas.

- Vá, já chega de perguntas. Os teus pais já devem estar a ficar preocupados.

- Os meus pais estão muito ocupados, nem se lembram de mim.

Laura reconheceu aquele olhar. Era o olhar de Mariana, quando recusava as suas brincadeiras para trabalhar. Pela primeira vez, viu a tristeza a inundar aquela criança.

Diogo levantou-se de rompante. Aproximou-se, deu-lhe um beijo repenicado na bochecha:

- Gosto de ti.

E foi embora, numa corrida de criança.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Capítulo 3 [1]

O Sol inundava o jardim através das ramagens secas de um Outono a chegar ao fim. Adivinhava-se um dia quente e de céu bem azul. Laura abriu os olhos. Pela primeira vez em duas semanas, sentiu calor. Tirou o casacão, foi até à fonte e lavou a cara. Estranhamente, sentiu-se muito bem. Os olhos estavam ainda inchados de horas e horas de lágrimas, mas parecia que lhe tinham lavado a alma. “E bem que precisava”, pensou.

Dali, da fonte, podia ver todo o jardim. Era o lugar que conhecia mais parecido com uma casa… passava ali a maior parte da sua vida, ainda não conseguira explicar porquê. Talvez fosse a esperança. Sim, era isso, agora reparava. Aquele lugar, apesar de deserto na maioria dos dias, era sobretudo um lugar de encontros… via-o essencialmente aos fins-de-semana. Pares de namorados, crianças com os pais ou os avós, grupos de amigos, gente que lá ia apenas para fazer desporto e descarregar o stress do dia-a-dia…

Normalmente não reparava, tão embrenhada estava na sua vida de morte. Mas havia alturas em que julgava ver, naquele jardim, o lado bom do Mundo. Aquelas pessoas felizes davam-lhe a ilusão de que não era tudo mau.

No entanto, sabia como desdenhavam a sua presença. Várias vezes tinha visto olhares incomodados com a sem-abrigo-que-destrói-o-aspecto-tão-bonito- -do-jardim. Já tinha aprendido a ignorar. Preferia concentrar-se no tão raro espectáculo do amor a acontecer à sua frente.

Respirou fundo. Das mãos e da cara ainda escorria a água gelada da fonte. Olhou de novo para o banco, que, enquanto esperava que a vida passasse, lhe servia de cama, de cadeira, de sofá, de chão.

Já não se esforçava para ter ali lugar, parecia que o Mundo já lho tinha reservado. Ninguém precisava daquele banco de sem-abrigo para nada. Era todo seu.

Lá estavam, pousadas, a meia dúzia de coisas que ainda lhe pertenciam. Bem, aliás… a meia dúzia de coisas que ainda lhe pertenciam… e não só!

Esfregou os olhos três vezes antes de acreditar. No banco não estava só a manta, o casacão, o saco plástico com as duas camisolas gastas, a t-shirt dos dias bonitos e o envelope com as últimas recordações de Mariana e Afonso… no banco estava também uma criança!

sábado, 13 de dezembro de 2008

Capítulo 2 [2]

Os 20 euros não deram para muito tempo. O bolso daquele casaco velho que vestia todos os dias e todas as noites para não morrer de frio ia ficando cada vez mais vazio. Até que, duas semanas mais tarde, mais nenhuma moeda parecia existir nos buracos de pano que os dedos tão desesperadamente apalpavam.

Estava de novo entregue a si própria. Durante dois dias não entrou nem uma migalha de pão na sua boca. Mas Laura sabia que não podia abusar mais, e não conseguiria levantar-se na manhã seguinte se não comesse alguma coisa. Estava a ficar sem forças.

As pernas tremiam-lhe, as imagens que lhe chegavam vinham desfocadas e oscilantes. Pela segunda vez num mês só, Laura tinha chegado ao extremo. O ar de Novembro entrava-lhe pelos poros, e dava-lhe uma sensação de mau estar. O Inverno adivinhava-se próximo, e ela sabia que as suas defesas não estavam em bom estado.

Meteu-se por uma rua já na periferia da cidade. Aquela rua não tinha saída, e ela sabia-o. Andou uns 20 metros, e teve a certeza de que ia morrer. A noite devorava-a.

À sua esquerda, dois enormes contentores verdes. Sentiu uma náusea. Aproximou-se. Não, não era desta que se deixava vencer. A vida era uma merda, mas a morte era capaz de ser pior.

As tonturas eram cada vez piores, o cheiro era terrível. Sabia que não a iria deixar tão cedo, que ia ocupar cada centímetro dos trapos velhos que tinha no corpo durante dias.

Tentou abstrair-se. Rasgou sacos, pegou em tudo o que conseguiu apanhar. Já não tinha gosto, já não era a Laura “esquisitinha” que não gostava de nada. Aquela comida que o Mundo já não queria, a ela parecia-lhe estranhamente saborosa. Encontrou ossos mal roídos, sacos de batatas ainda cheios de migalhas, encontrou até uma caixa de “take away” quase intacta.

Encheu a barriga como se de um banquete se tratasse. Estava desesperada. Não chegou nem a ver os olhares de nojo que lhe lançava um casal que estava a entrar em casa. Não devem ter gostado de ver alguém a aproveitar-se do seu jantar, aquele que ele tinha ido buscar ao restaurante e que tinha deitado fora por lá encontrar um cabelo que não era seu.

No fim da refeição, Laura voltou ao mesmo banco de jardim onde dormia havia meses. Nessa noite, e pela primeira vez depois de sair daquela casa que já não era sua, chorou. As lágrimas de raiva caíam-lhe desesperadas pelas faces rosadas. A certa altura, já não dava por elas. Nunca ninguém chorou tanto e tanto tempo como aquela mulher naquela noite. Cada lágrima era um grito que ecoava naquele Mundo ao qual já não pertencia. Chorava de desespero, de raiva. Chorava de solidão, chorava de saudade.

Chorava por não ter agarrado a vida a tempo. E chorava porque estava irremediavelmente só. Era desenraizada, porque naquela choldra não havia nada a que se agarrar. Já não via pessoas, apenas monstros. Tinha perdido toda a esperança na humanidade. O Mundo era uma merda. Ela sabia-o, porque o tinha visto. Sentada naquele banco do jardim.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Capítulo 2 [1]

Viveu na rua durante dois anos. Aqui e ali, fez uns trabalhos como empregada doméstica, que lhe davam para alugar uma pensão durante umas semanas. Mas invariavelmente, os patrões acabavam por descobrir a vida que ela levava e tinham horror a ter uma sem-abrigo em casa, debaixo do mesmo tecto que os filhos. Por isso, passados uns dias ou umas semanas, voltava para os becos da cidade e poupava o dinheiro até ao último cêntimo, comendo pães às migalhas para durarem muito tempo.

Não gostava nada de pedir, porque sentia que as pessoas não tinham obrigação de a ajudar. Tinha-se arruinado, tinha que viver às suas custas.

Numa noite, depois de o dinheiro do último trabalho ter acabado e não comendo há dois dias, Laura desesperou.

Cheia de fome e temendo não conseguir sobreviver mais uma noite, fez o trabalho mais sujo e mais indigno para uma mulher.

Foi fácil arranjar um cliente àquela hora. Saídos das discotecas, miúdos ricos e bêbados vagueavam pelas ruas espalhafatosamente. Riam de tudo e de nada, e não sabiam da triste figura que faziam.

Um deles olhou-a de repente. Não tinha reparado que existia ali mais alguém além dele e do grupo de amigos, que também não estavam num melhor estado.

O rapaz puxou-lhe o braço. Agora, na claridade, conseguia ver-lhe bem os olhos verdes. Laura sentiu-lhe um hálito de cerveja que a enojou.

De olhos arregalados, olhou-a de alto abaixo e perguntou:

- Quanto é?

- 100 euros – respondeu.

- Eh lá, as putas estão caras!

- É pegar ou largar.

O rapaz sorriu e olhou para os amigos, que tinham parado lá à frente, ao dar pela sua falta. Com a cabeça, disse-lhes para irem andando e arrastou-a para um beco.

Foi a experiência mais horrível de toda a sua vida. Ele tresandava a cerveja e a suor e agarrava-a com força de um animal. Rasgou-lhe as roupas, maltratou-a, deixou-a sozinha. No fim, meteu-lhe uma nota de 20 na mão que tremia e nunca mais voltou.

Durante dias, não conseguiu reagir. Comprou um saco de pães com o pior dinheiro que já tinha ganho e permaneceu horas e horas no mesmo sítio, a olhar para o mesmo centímetro de chão, com a mesma expressão na cara.

Jurou para nunca mais. Preferia morrer a sujeitar-se àquilo. Já não se conhecia. A Laura tinha desaparecido, ficara um resto de uma desconhecida. O seu rosto já não tinha os mesmos traços. A vida tinha-a vencido.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Capítulo 1

Laura não fora sempre uma “sem-abrigo”.

Houve um tempo em que era uma “pessoa normal”, com um emprego e com uma família para cuidar.

Nessa altura, era uma pessoa muito ocupada. Ia para o escritório de manhã, chegava à noite. Doía-lhe na alma ver Mariana já deitada, quando chegava a casa. A filha era o que de mais importante tinha na vida, dizia ela. Mas tinha que lhe assegurar uma vida boa, e por isso tinha que fazer aquela empresa andar para a frente!

Disse isto até a perder. Quando recebeu, no escritório, a notícia de que a filha e o marido tinham morrido ao chocar com um camião a caminho da escola, percebeu o que andara a fazer. Não conhecera a filha, porque lhe queria dar uma vida boa… e depois já não houve tempo para mais nada.

Num dia perdeu as duas pessoas mais importantes da sua vida. O marido, aquele que lhe tinha ensinado o que é amar de verdade, a filha, cujo sorriso lhe dava sentido à vida.

Mas naquela altura ela fazia muitas asneiras. E teimava em dar mais importância à porcaria da empresa de contabilidade, que tanto tempo lhe ocupava e que agora já não significava nada.

Agora já não lhe interessavam contas, números, clientes e dinheiro. O seu negócio já não era negócio, já não era nada. Já não tinha interesse.

Aos poucos, foi perdendo cada vez mais dinheiro. Primeiro, os lucros começaram a diminuir, depois os ganhos já não compensavam os gastos. Perdeu rendimentos, deixou de conseguir pagar a luz, o gás, a água. E isso não lhe fazia diferença nenhuma. Os vizinhos estranhavam, as pessoas comentavam.

Passava os dias em casa, de olhos esbugalhados a olhar o infinito. Chorava muito no início, mas depois as lágrimas esgotaram-se. As pessoas já não a reconheciam, porque no seu olhar transparecia uma raiva vencida pelo cansaço. O seu olhar era um olhar perdido. De quem já não tem nada a que se segurar, porque perdeu tudo.

Foi um instante até ser posta fora de casa. Nada que lhe fizesse muita diferença, porque aquela casa já não lhe dizia nada. Sem as pessoas que amava, não conseguia lá viver. Passavam-lhe constantemente pela cabeça imagens de Mariana e de Afonso a brincar um com o outro. Ele adorava pegar na filha, atirá-la para o sofá e fazer-lhe cócegas até as lágrimas lhe virem aos olhos, de tanto rir… só agora reparava, sempre que ela estava com o pai estava a sorrir! Sim, era verdade. Eles eram muito amigos! Quem lhe dera agora poder voltar atrás, para poder entrar nas brincadeiras em vez dos impacientes “Vá, já chega!” que lhes lançava.

Fogo, porque é que tinha sido tão burra?! Porquê?! Porque é que tinha deixado a vida passar por ela assim?

Agora vivia na rua. Tinha chegado a um ponto extremo, nunca se imaginaria um dos marginais que sempre desprezara.

Mas ela nunca podia realmente imaginar. Nunca podia imaginar que havia coisas mais importantes do que a “vida boa” que teimava em dar à filha, nunca podia imaginar que de um momento para o outro pudesse perder tudo o que tinha de importante, nunca podia imaginar que o dinheiro não faz ninguém feliz, nunca podia imaginar que ia perder o encanto todo da vida, nunca podia imaginar que ia chegar ao limite dos limites.

Não, não podia. Isto ultrapassava tudo o que cabia no mundinho que tinha criado à sua volta.

Mas agora estava de volta ao Mundo.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Prólogo

E virou a página.

Estava acabado, tudo acabado. Felizmente. Aquele capítulo terminara e estava na hora de a ponta da caneta começar a desenhar novas ideias, novos sonhos e novos projectos.

Sabia que estava mudada. Sentia-o, e podia afirmar com toda a certeza que o Mundo a tinha feito crescer. Não, não era aquele “crescer depressa demais” de que todos falavam. Um crescer a sério, um crescer do coração. Um crescer daqueles que transformam por dentro e trazem uma forma nova de ver as coisas, mais madura. Um crescer que muda um olhar.

A rua muda qualquer um. Só quem vive abandonado a cada banco de jardim, a cada berma, a cada grito da noite e à ruína de cada manhã é que percebe como muda. Muda, explode tudo por dentro de cada vez que um olhar desconhecido deixa passar o medo que sente. O medo da desgraça, e principalmente o medo que aquela desgraça o atinja a ele também.

Sim. Eram já incontáveis as voltas que aquele coração tinha dado ao perceber que as pessoas tinham medo dela. Quando a olhavam, o relógio começava a andar mais depressa. Aceleravam o passo, certos de que havia algo bem urgente para fazer num qualquer lugar bem longe dali.

As pessoas não gostavam da miséria, porque a miséria incomoda. É que apesar de tudo lembra-as que são humanas, e que por isso não são diferentes dos outros.

Mas não, aquela vida não lhes podia tocar também a elas. Não podia! E por isso fugiam. Porque a miséria incomoda, mas não o suficiente para quererem acabar com ela.

Mas o que mais a incomodava não era a cobardia daqueles olhares cheios de medo da sua própria desgraça. O que mais a incomodava era a pena que tinham dela.

Revoltavam-na os olhares compassivos dos “perfeitos”, que até lamentavam muito a sua vida triste e tumultuosa. Revoltavam-na as “esmolinhas para a pobrezinha que não tem nada para comer”.

Não, ela não era dessas. Ela não queria esmolinhas de ninguém. Ela queria dignidade. E várias foram as pessoas que ficaram muito admiradas quando ela recusou a caridosa moeda de vinte cêntimos que lhe ofereciam.

Iam embora furiosas, a pensar em toda a ingratidão que lhe tinham sentido.

E talvez tivessem razão. Talvez devesse aproveitar tudo para conseguir sobreviver. Mas preferia vasculhar no lixo a aceitar caridadezitas baratas. Sim, vasculhar no lixo. Não era nada que já não tivesse usado como último recurso, para que a miséria não a matasse.

“Vasculhar no lixo, que porcaria!”, murmuravam as pessoas que por ela passavam. A frase que também ela já havia murmurado antes, quando por acaso se deparava com a situação. Mas naquela altura… naquela altura não sabia o que era a vida.

Agora sim. Agora sabia. Agora sentia no corpo cada bofetada que o Mundo lhe dava. E sabia que tinha forças para se libertar de cada nódoa negra que tinha no corpo, principalmente aquelas que mais ninguém via, mas que ela sentia bem. Sim, as do coração.