quarta-feira, 23 de julho de 2008

Capítulo 1

Laura não fora sempre uma “sem-abrigo”.

Houve um tempo em que era uma “pessoa normal”, com um emprego e com uma família para cuidar.

Nessa altura, era uma pessoa muito ocupada. Ia para o escritório de manhã, chegava à noite. Doía-lhe na alma ver Mariana já deitada, quando chegava a casa. A filha era o que de mais importante tinha na vida, dizia ela. Mas tinha que lhe assegurar uma vida boa, e por isso tinha que fazer aquela empresa andar para a frente!

Disse isto até a perder. Quando recebeu, no escritório, a notícia de que a filha e o marido tinham morrido ao chocar com um camião a caminho da escola, percebeu o que andara a fazer. Não conhecera a filha, porque lhe queria dar uma vida boa… e depois já não houve tempo para mais nada.

Num dia perdeu as duas pessoas mais importantes da sua vida. O marido, aquele que lhe tinha ensinado o que é amar de verdade, a filha, cujo sorriso lhe dava sentido à vida.

Mas naquela altura ela fazia muitas asneiras. E teimava em dar mais importância à porcaria da empresa de contabilidade, que tanto tempo lhe ocupava e que agora já não significava nada.

Agora já não lhe interessavam contas, números, clientes e dinheiro. O seu negócio já não era negócio, já não era nada. Já não tinha interesse.

Aos poucos, foi perdendo cada vez mais dinheiro. Primeiro, os lucros começaram a diminuir, depois os ganhos já não compensavam os gastos. Perdeu rendimentos, deixou de conseguir pagar a luz, o gás, a água. E isso não lhe fazia diferença nenhuma. Os vizinhos estranhavam, as pessoas comentavam.

Passava os dias em casa, de olhos esbugalhados a olhar o infinito. Chorava muito no início, mas depois as lágrimas esgotaram-se. As pessoas já não a reconheciam, porque no seu olhar transparecia uma raiva vencida pelo cansaço. O seu olhar era um olhar perdido. De quem já não tem nada a que se segurar, porque perdeu tudo.

Foi um instante até ser posta fora de casa. Nada que lhe fizesse muita diferença, porque aquela casa já não lhe dizia nada. Sem as pessoas que amava, não conseguia lá viver. Passavam-lhe constantemente pela cabeça imagens de Mariana e de Afonso a brincar um com o outro. Ele adorava pegar na filha, atirá-la para o sofá e fazer-lhe cócegas até as lágrimas lhe virem aos olhos, de tanto rir… só agora reparava, sempre que ela estava com o pai estava a sorrir! Sim, era verdade. Eles eram muito amigos! Quem lhe dera agora poder voltar atrás, para poder entrar nas brincadeiras em vez dos impacientes “Vá, já chega!” que lhes lançava.

Fogo, porque é que tinha sido tão burra?! Porquê?! Porque é que tinha deixado a vida passar por ela assim?

Agora vivia na rua. Tinha chegado a um ponto extremo, nunca se imaginaria um dos marginais que sempre desprezara.

Mas ela nunca podia realmente imaginar. Nunca podia imaginar que havia coisas mais importantes do que a “vida boa” que teimava em dar à filha, nunca podia imaginar que de um momento para o outro pudesse perder tudo o que tinha de importante, nunca podia imaginar que o dinheiro não faz ninguém feliz, nunca podia imaginar que ia perder o encanto todo da vida, nunca podia imaginar que ia chegar ao limite dos limites.

Não, não podia. Isto ultrapassava tudo o que cabia no mundinho que tinha criado à sua volta.

Mas agora estava de volta ao Mundo.

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